Nas últimas duas décadas, a transcriação ganhou proeminência como prática profissional inserida na indústria dos serviços linguísticos.
A transcriação, de uma forma talvez até um pouco simplista, pode ser definida como uma actividade relacionada com a tradução que combina processos de tradução propriamente dita com adaptação cultural e (re)criação ou reinterpretação criativa, consoante as características do texto, das instruções fornecidas pelo cliente (brief), das características linguísticas e, principalmente, culturais do público-alvo e da finalidade/objetivo do texto.
Trata-se do processo de adaptação de uma mensagem de um idioma para outro, mantendo a mesma intenção, estilo, tom e contexto. Ou seja, não se trata da tradução literal daquilo que é dito no idioma de partida, mas de manter a mensagem, de suscitar as mesmas emoções e reter as mesmas implicações do idioma de origem no idioma de chegada.
Assemelha-se ao conceito de localização, que consiste na adaptação de um texto traduzido a um determinado público-alvo, porém, afasta-se da localização pelo papel essencialmente criativo do tradutor.
Envolve a adaptação não apenas de palavras, como até de vídeos e imagens — podendo nem sequer restar no texto “transcriado” uma única palavra contida no texto original, desde que retendo a mensagem e servindo o propósito do original.
Ao contrário da crença generalizada, a transcriação vai muito além de uma mera “tradução criativa”. É precisamente pela natureza criativa que a transcriação fica a meio caminho entre a tradução e a escrita propriamente dita.
Com efeito, a transcriação está muito mais próxima do copywriting (redacção) do que da tradução. A transcriação é copywriting, a diferença é que não se parte do zero, porque já existe um texto de referência num outro idioma que não o de chegada, e a tradução é apenas uma parte de todo o fluxo de trabalho.
Um pouco de história
No contexto académico, pensa-se que o termo transcriar foi introduzido na década de 60 pelo poeta, ensaísta, tradutor e editor indiano, o Prof. Purushottam Lal, que descreveu a tradução de textos antigos em sânscrito como uma tarefa na qual “o tradutor deve editar, reconciliar e transmutar; o seu trabalho, em muitos aspectos torna-se, em grande parte, um trabalho de transcriação.”
Não obstante, o termo foi também proposto na década de 50 pelo poeta e tradutor brasileiro Haroldo de Campos, num contexto cultural muito específico — o movimento literário da Poesia Concreta, que valorizava a materialidade linguística, os aspectos da sonoridade, da grafia e até da disposição gráfica das palavras na página.
Era dado destaque à forma sobre o aspecto semântico, que decorria posteriormente na interacção entre poema e leitor, sendo esta uma leitura aberta a opções por parte do leitor.
Enquanto grandes autores como James Joyce rompiam com os padrões canónicos, surgia a necessidade de os traduzir. Porém, como traduzi-los preservando a essência deste tipo de produção literária, que explorava estes recursos de materialidade linguística, no processo de tradução se o significado do texto era nada mais que um aspecto secundário?
Diante desse desafio, nasceu uma nova prática de tradução: a transcriação, desenvolvida também a partir das teorizações do poeta norte-americano Ezra Pound, com a meta principal de recriar o texto original no idioma de chegada, tentando explorar os recursos utilizados no idioma de partida, por forma a recriá-los no idioma de chegada.
Esta nova técnica permitiu a vários autores traduzir em língua portuguesa textos clássicos desafiantes, como a Ilíada, de Homero e a Divina Comédia, de Dante.
Embora nascida da arte e da literatura, a transcriação ascendeu lado a lado com o crescimento galopante das campanhas de marketing internacionais e globais.
Avançando rapidamente para o século XXI, algumas agências de tradução começaram a vender-se no mercado especificamente como agências de transcriação, com profissionais de marketing e tradutores locais que pegam na essência de uma mensagem publicitária original e a adaptam ao seu próprio mercado. É fácil perceber porque é que uma campanha publicitária “transcriada”, e não simplesmente traduzida, se torna tão mais eficaz.
Onde se aplica?
Uma das principais dificuldades da transcriação é, precisamente, efectuar a delimitação conceptual. Na verdade, nem se trata de um conceito, o termo foi originariamente criado para designar um processo de tradução, que por acaso se distingue por ser criativo.
Portanto, está mais relacionado com uma prática do que com uma teoria, e não tendo delimitação conceptual predefinida, é fácil percebermos como se pode tornar complexo e até elusivo. Porém, é também por isto, que esta técnica se presta para os mais diferentes propósitos.
Como vimos acima, transcriação é diferente de tradução. Como tal, também se distingue da tradução de marketing, porque em vez de representar fielmente o texto, adapta-o com vista a despertar uma reacção emocional. Também não se trata de copywriting multilingue, que seria a criação de textos em vários idiomas sem nenhum texto de referência, com base apenas nos requisitos da marca, produto ou campanha.
Se tivesse permanecido diluída nos processos de tradução e redacção, a transcriação nunca teria emergido, mas encontrou o seu próprio lugar e relevância no marketing justamente por ter a função muito especial de transferir a mensagem de uma campanha de marketing ou publicidade por forma a torná-la compreensível, identificável e apelativa para um público e mercado diferentes, sem deixar de respeitar a identidade da marca.
Apesar de tudo, embora a transcrição assente como uma luva no marketing, não é aplicável apenas a esta área — é uma técnica transdisciplinar, aplicável a uma variedade de áreas.
Está também presente em campos que nem sequer estão relacionados com a criatividade, como, por exemplo, os cuidados de saúde, área em que realiza a adaptação dos materiais de educação sanitária, visando o melhor entendimento possível e mantendo relevância cultural para os vários grupos linguísticos e étnicos específicos.
É ainda aplicável, por exemplo, na resposta das organizações internacionais às crises (como a crise sanitária actual, em que vários documentos foram elaborados para distribuição pelos cinco continentes); nas comunicações corporativas entre filiais situadas em diferentes pontos do globo; na tradução de websites, newsletters empresariais, revistas corporativas, conteúdos de blogues e publicações nas redes sociais, trabalhos científicos destinados a apresentação em vários países, etc.
Em geral, quaisquer materiais que devam ser persuasivos, motivacionais, e que incitem a sentir e a agir (call to action), requerem uma boa dose de sensibilidade, adaptação e criação.
Posto isto, a transcriação assumiu-se já como uma actividade profissional bastante prolífica, presente numa grande variedade de campos e em franca ascensão. Embora ainda algo incompreendida ou até mesmo subvalorizada para a generalidade das pessoas, é inquestionável a forma como já se posicionou no nosso mercado como um serviço relevante e, em alguns casos, até essencial.
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